Projeto da UNIFAL-MG resgata histórias silenciadas da comunidade LGBTQIA+ do Sul de Minas
Documentos e entrevistas permitem construir um acervo de memória com fontes para pesquisas e debates públicos
AMHOR é acróstico para “Acervo de Memória e História do Orgulho LGBTQIA+ no Sul de Minas”, nome dado ao projeto de extensão da UNIFAL-MG criado com a finalidade de construir um acervo virtual sobre a história e as memórias do orgulho LGBTQIA+ na região sul-mineira. Neste 17 de maio, data em que a comunidade celebra o Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia, vale a pena conhecer um pouco mais sobre o trabalho do grupo de estudos, formado por docentes e discentes da Universidade.
“A escolha do nome, AMHOR, se relaciona com valores políticos que o grupo defende como forma de assumirmos a Universidade como lugar da alteridade, do respeito à diversidade e ao amor com compromisso político em defesa das vidas que circulam na cidade de Alfenas e em outras ao seu redor”, conta Marta Gouveia de Oliveira Rovai, professora do curso de História da Universidade e coordenadora do projeto junto a André Luiz Sena Mariano, professor do curso de Pedagogia.
Segundo ela, o projeto é consequência de atividades desenvolvidas por outro grupo multidisciplinar de estudos durante a pandemia, o qual se chamava “Gênero, Diversidade e Afeto”. “O projeto AMHOR foi criado de forma presencial, ainda com caráter multidisciplinar, para aproximar mais as pessoas e falar de questões pessoais e sociais. Mas não só isso. Ele tem como objetivo construir um acervo virtual sobre a história e as memórias do orgulho LGBTQIA+ no sul de Minas”, relata.
Organização do grupo para levantamento e catalogação de documentos
Constituído por 18 acadêmicos dos cursos de Ciências Sociais, Farmácia, Geografia, História, Letras, Odontologia e Química, o grupo de estudos do projeto atua no levantamento e catalogação de documentos cedidos pelo Movimento Gay de Alfenas (MGA) e em entrevistas com pessoas do movimento LGBTQIA+ dentro e fora da UNIFAL-MG.
“Pretendemos, por meio das entrevistas orais, preparar os/as discentes para o trabalho de pesquisa com história oral, produzir fontes sobre a comunidade e disponibilizá-las publicamente, contribuindo para o reconhecimento do direito à memória e à história, num exercício de produção de história pública”, ressalta a professora Marta Rovai.
Todas as quartas-feiras pela manhã, o grupo se reúne para realizar estudos, catalogar, digitalizar documentos e elaborar as entrevistas. Conforme a coordenadora do projeto, o grupo desenvolve estudos sobre temas relacionados a gênero, sexualidade, acervos virtuais, memória, história oral, amor público, entre outros. “Além de permitir um trabalho de melhor qualidade, esses estudos dão instrumentos para a produção de um minidocumentário e um livro a ser publicados no ano de 2024, de forma coletiva”, anuncia.
Os integrantes também mantêm contato com pessoas do movimento LGBTQIA+, externas à Universidade, para as entrevistas, além de conversar com membros de outros acervos virtuais, ligados a museus e outras universidades. “Membros das comunidades LGBTQIA+ são convidados a conversar com o grupo, contando suas histórias e apresentando suas demandas. Eles também serão convidados a contribuir na escrita do livro e na feitura do documentário, além de eventos envolvendo debates públicos, como a Semana da Diversidade que será realizada em conjunto com o MGA, o Diverges e cursos de saúde da UNIFAL-MG”, detalha.
A catalogação do material passa ainda pela análise das narrativas que constam nos livros “Que possamos ser o que Somos (2019)” e “Sob nossa pele e com nossas vozes” (2022), escritos pela própria professora Marta Rovai junto ao movimento LGBTQIA+, e de documentos como jornais, documentos oficiais, fotografias e artigos, relativos ao MGA e ao movimento.
“No acervo virtual será disponibilizado um roteiro afetivo do movimento LGBTQIA+, a partir de suas histórias, além da elaboração de propostas de aulas junto a professores/as da rede pública, que serão convidados no segundo semestre a dialogar com o grupo”, explica.
Trabalho coletivo e solidário do grupo acolhe e valoriza pessoas LGBTQIA+ da Universidade
Entre os aspectos relevantes da investigação do grupo, a coordenadora destaca as fontes de pesquisa encontradas. “O mais importante a observar e que temos percebido é um montante enorme de fontes para a pesquisa sobre a história LGBTQIA+, tirando do silenciamento a sua trajetória”, enfatiza.
“Há um material riquíssimo que servirá como documentos para pesquisas, além de que sua publicização mostrará o reconhecimento público dos eventos envolvendo a história silenciada”, complementa.
Conforme a professora Marta Rovai, o trabalho coletivo e solidário do grupo enquanto desenvolve a pesquisa e faz os debates também merece reconhecimento. “Estamos falando de uma maioria de pessoas LGBTQIA+ no grupo, que se sente acolhida e valorizada na Universidade”, frisa.
Na opinião da coordenadora, o projeto assume um papel de relevância não apenas para o movimento, mas para a população do Sul de Minas. “O projeto é fundamental para o rompimento com o silêncio histórico da população LGBTQIA+, uma vez que produz debates públicos e permite o acesso a documentos que podem servir para pesquisas, para as aulas e, principalmente, para o reconhecimento do direito à memória, à história e à vida plural e diversa”, afirma.
Integram o projeto os estudantes: André Luís Teotônio Teixeira, José Luiz Alves Neto, Ana Beatriz de Melo Ambrósio, Mariana Silva de Sá, Mateus Lopes, Geovanna Morgado da Penha, André Gustavo Fernandes de Castro, Elisa Maria Prado, Júlia Moraes Coelho, Luiza Zane Deponti, Karla Aparecida Siqueira, Paulo Ricardo Passos Rezende, Luara Conceição Santos, Marcos Régis Batista da Costa Joice Guimarães Silva, Augustine Araújo Khair, Gian Carlo Camilo Telles e Letícia Maria Polidoro Abelo.
Histórias que retratam experiências de amor, orgulho e luta
Para o acadêmico André Teixeira, do curso de História, a participação no projeto AMHOR o possibilitou conhecer histórias de luta de muitas gerações. “Eu me deparei com vários documentos e histórias que retratam as resistências das gerações que vieram antes de nós: organizações sociopolíticas e sujeitos que fizeram a diferença”, relata. “Estar em contato com tais materiais e narrativas me inspiram a lutar pelo direito de ser quem eu sou e garantir o mesmo pelos que virão”, reforça.
Segundo ele, a luta das comunidades LGBTQIA+ é pelo direito de amar e ser amado, como também uma luta pela dignidade, respeito e pela existência. “Só com amor mudaremos o mundo; e com o nosso AMHOR, teremos sempre um refúgio para nos orgulharmos do nosso passado e nos inspirarmos para o futuro”, diz. “Com esse projeto, me transformei e me transformo: me humanizo, me solidarizo e me orgulho de ser quem sou. Viva a diferença, viva cada vida! Que lutemos sempre pelo respeito e pelo amor”, conclama.
Luara Santos, discente do curso de História, compartilhou uma história pessoal de amor e superação. Mulher cis lésbica, ela relata que sofreu lesbofobia por alguém bem próximo e, ao contrário da reação que esperava de seus pais, recebeu apoio e acolhimento.
“Minha família é bem religiosa, sou filha caçula de um policial militar aposentado e uma revendedora de cosméticos. Por ser um senhor mais velho e militar, eu sempre me reprimi muito diante do meu pai, pois tinha muito medo de ele me rejeitar”, compartilha.
Ao decidir revelar sua sexualidade, Luara Santos cortou o cabelo e a reação foi completamente diferente de tudo que imaginou. “Meu pai me olhou e disse ‘ah, filha, não tem nenhum problema, eu amei o seu cabelo, tá na moda, né?!’, nós rimos e desde então a nossa relação só melhorou”, conta.
Mas Luara Santos também passou por momentos desagradáveis. “Após receber a notícia da reação da minha família a respeito da minha sexualidade, um irmão – por parte de pai – fez uma das piores coisas que já vivi: colocou em suas redes sociais o acontecido, dizendo muitas coisas horríveis e de baixo calão, ele dizia que eu sou uma vergonha para a família Santos, chegou a exigir que meus pais me expulsassem de casa porque por ser lésbica, dizia que eu seria má influência e companhia para os meus sobrinhos, entre outras coisas”, conta.
“Aos prantos, mostrei essa publicação para os meus pais que, sem pensar duas vezes, ligaram para ele e me defenderam ‘com unhas e dentes'”, revela. “O que tinha tudo para dar errado – um pai policial, uma família religiosa e a lesbofobia por parte de alguém que deveria dar apoio -, acabou resultando em um ‘final feliz’ para essa história, pois, com o apoio incondicional dos meus pais, percebi que sempre serei acolhida e amada por eles e é apenas isso que realmente deve me importar”, finaliza.
O estudante José Luiz Alves Neto, do curso de Geografia (Licenciatura), homem gay cisgênero, ressalta que a luta contra a homofobia, a transfobia e a bifobia são todos dias. “O óbvio precisa ser dito. Na memória oficial, o 17 de maio faz alusão ao dia em que a OMS retirou oficialmente a homossexualidade da sua Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). E ainda que perguntássemos para diversas pessoas qual o significado atribuem à data, as respostas seriam múltiplas, aludindo desde as lutas travadas no plano do cotidiano, até os marcos institucionais conquistados a duras penas”, diz.
Segundo José Luiz Neto, as respostas nada mais são do que a memória produzindo um significado individual e coletivo para a luta. “Nossa luta são todos os dias, porque todos os dias somos alvos da violência, discriminação e intolerância, ainda que cada um de nós viva diferencialmente este estado de precariedade induzida. Acionamos a memória deste dia e de todos os outros dias como uma tecnologia de sobrevivência, para que aquelas e aqueles que lutaram antes de nós permaneçam vivos. Para que possamos estar vivos sabendo que nossa luta não se encerra em nós, mas permanece, desata”, relata.
Toda a reflexão feita pelo estudante justifica o objetivo do projeto AMHOR de “produzir esta memória individual e coletiva de corpos que lutam e persistem pelo direito de existir com dignidade”. Conforme ele, essa proposta é para que outras pessoas possam se sentir pertencentes a essa comunidade, que mesmo imaginada, está transcrita em experiências corpóreas.
“A partir do projeto AMHOR estamos aprendendo que a luta contra a LGBTFOBIA é um processo envolvendo múltiplos determinantes. Que o esconderijo é diferencialmente produzido para cada pessoa LGBTIA+, pois o classicismo também nos assujeita, o racismo também nos assujeita, o patriarcalismo, a xenofobia e o capacitismo também nos assujeita. Quando munidos deste pensamento estamos apontados para uma práxis transformadora, lutando pelo direito à moradia, à saúde, à memória, à cidade, à educação pública e de qualidade, por empregabilidade. A partir daí podemos compreender a importância e a força de nossas identidades”, analisa.
José Luiz Neto faz questão de lembrar dados do Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil (2023), 80 pessoas LGBTQI+ foram mortas em 2023: 50 travestis e mulheres trans, 2 homens trans, 26 homens gays cis e 2 mulheres lésbicas cis. “Nossa luta também é contra as estatísticas, de sermos transformados em números sem que sejamos passíveis de luto. Por isso, reivindicamos que este dia seja lembrado pelas inúmeras batalhas que travamos cotidianamente contra esta sociedade normalizadora. Para que quando um de nós cair, outros mil se levantem. Lutar contra a homofobia, transfobia, bifobia e outras formas de discriminações correlatas é lutar contra o silenciamento da historicidade de nossas vidas e da geograficidade de nossas práticas. De tão insubmissas(os) reivindicamos o direito de uma vida passível de ser vivida”, desabafa.
O projeto ganhará repercussão em eventos nacionais e internacionais. Na próxima semana, a professora Marta Rovai estará na Universidade Nacional de Quilmes, na Argentina, onde fará uma apresentação sobre o trabalho. Em junho, integrantes do grupo apresentarão o projeto durante o 15º Encontro Regional Sudeste de História Oral: “Memória, corpo, mundo”, que será promovido pela Regional Sudeste da Associação Brasileira de História Oral e sediado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
Confira dois relatos que compõem o acervo construído pelo projeto
“Esse movimento começou a me dar segurança. Eu comecei a sentir força nos meus amigos. Você cria uma perspectiva melhor de vida, sabe? E aí você vê que não está sozinho! Que como eu, também tem outro com dor! Que no meu esconderijo tem muitos que também estão escondidos, mas quando começa a abrir uma janelinha, começa a sentir um solzinho e aí a gente pensa: “Nossa, tô sentindo um sozinho… E tem outro que também está… Eu posso apoiá-lo!”… E a gente ajudava muito o outro, andava muito junto! E esse grupo foi ficando forte!… Você não tem tanto medo de ser agredido. Se você é agredido verbalmente, aquilo fica sem sentido, porque você está forte. Você não está sozinho, não!”
Wagner Gonçalves
Homem cis gay, alfenense e ex-militante do Movimento Gay de Alfenas (MGA)
“Sou essa pessoa que pensa interseccional na minha vida. E eu me entendo na travestilidade, na negritude e na classe como algo muito importante, o que me traz um empoderamento, porque eu acho quando estava vivendo minha orientação sexual, isso está relacionado também a muitos processos que fui vivendo e construindo minha segurança para poder dar meus passos. Eu me entendo e falo ‘sou travesti.'”
Nina Helena
Travesti negra, mineira de São Lourenço e advogada
(Diretoria de Comunicação Social da Unifal-MG)
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